Posted by : Thiago V. M. Guimarães sexta-feira, 8 de novembro de 2013


Este texto corre sério risco de ser inócuo perante aqueles de mente impenetrável à reflexões. Porém àqueles que sempre buscam o auto questionamento e o refino de ideias pode servir como um norte, então acredito que valha a pena tratar sobre esse assunto.
Em 1860, em uma de suas apresentações na Royal Society, Michael Faraday foi interpelado pela Rainha da Inglaterra, que ao final de sua apresentação lhe perguntou: “Tudo isto é muito interessante, Senhor Faraday, mas para que serve?”. Consta que Faraday teria respondido: “Majestade, para que serve um recém-nascido?”. fonte
A nossa sociedade é muito acostumada a dar valor às coisas por sua funcionalidade, portanto é uma tarefa fácil atribuir valor à tecnologia. Também é fácil ver a importância da ciência que desenvolve essa tecnologia, mas é complicado visualizar a relevância da ciência de base¹, a qual atua de modo implícito. Qual a importância da descoberta do bóson de Higgs? Qual a relevância em saber que existem planetas extrassolares ? Qual o sentido de estudarmos os neutrinos ? Por que enviar uma sonda para Marte?

Muito provavelmente você conhece alguém que responderá as perguntas acima de forma categórica (e estúpida): “Isso não possui nenhuma Importância”. Essa mentalidade é fruto da nossa total alienação e ignorância referente à ciência. Pensando nisso, estou escrevendo esse texto para tentar justificar a importância da ciência de base e do investimento submetido a ela.


A ciência que aparentemente não se aplica²:

Temas de pesquisas científicas como astronomia, astrofísica, cosmologia, alguns ramos da teoria quântica de campos e física de partículas, são vistos por muitos como "pesquisa inútil" por não ter aplicação aparente. Mas não ter aplicação aparente não significa ser inútil, significa que as mudanças causadas por esses estudos são mais subjetivas e, algumas vezes, mais profundas do que qualquer aplicação tecnológica imediata.

Para entender isso temos que olhar para o passado. Há mais ou menos mil anos atrás, víamos uma concepção de universo completamente diferente da atual: a Terra estava no centro do universo, a divisibilidade da matéria chegava até o átomo, o tempo era algo fixo e difícil de se entender, o universo era estático e “pequeno”. A partir do momento que novos conhecimentos foram construídos, derrubamos nossas antigas visões sobre o universo e sobre qual era nosso lugar nele, colocamos nossas concepções, supostamente sólidas e lógicas, em cheque, desestabilizamos séculos de conhecimento humano sobre a natureza e nós mesmos.

Atualmente sabemos que não somos o centro do universo, que a matéria é composta por partículas ainda menores que o átomo, que existem bilhões e bilhões de estrelas no universo e que muitas delas são semelhantes ao nosso Sol, sabemos também que o nosso universo pode ter um início, que o tempo é relativo, que a antimatéria existe, que somos pequenas criaturas vivendo em um pequeno planeta orbitando uma pequena estrela na periferia de uma galáxia qualquer, que grande parte do material que compõe nossos corpos foram sintetizados no interior de estrelas que morreram há muito tempo. Ou seja, passamos por uma gigantesca revolução intelectual nos últimos mil anos, isso não foi útil? não trouxe aplicações tecnológicas a longo prazo?

Dois exemplos contundentes de como a ciência de base afeta profundamente nossa vida é a revolução copernicana, que tirou a Terra do centro do universo, e a teoria da relatividade que tirou o caráter absoluto do tempo. De forma geral ambas tiveram impactos sociais e culturais profundos, a ponto de nossa filosofia ocidental ser impensável sem essas ideias. Com a teoria quântica foi a mesma coisa, seu desenvolvimento trouxe uma série de visões novas a cerca do universo e até a nossa filosofia teve, de certa forma, que se reestruturar em alguns segmentos.

Então a importância da ciência de base se dá na estrutura de nosso conhecimento e de nossa relação com o universo. Esse conhecimento novo não é uma transformação local na ciência, mas sim um fenômeno global que se arrasta para diversas áreas do conhecimento. Eugene Wigner, em seu artigo “The Unreasonable Effectiveness of Mathematics in the Natural Sciences”, começa a seguinte estória:

Há uma história sobre dois amigos, que eram colegas na escola, falando sobre seus trabalhos. Um deles tornou-se um estatístico e estava trabalhando em crescimentos populacionais. Ele mostrou um de seus trabalhos a seu ex-colega de classe. Seu trabalho começou como sempre, com a distribuição de Gauss, e o estatístico explicou o significado dos símbolos para a população real, para a média da população, e assim por diante. Seu colega estava um pouco incrédulo e não tinha certeza se o estatístico estava de fato falando sério ou se estava brincando. Então ele pergunta: "Como você pode saber disso tudo? … E o que é esse símbolo aqui?" "Oh", disse o estatístico ", isto é pi". "O que é pi?", o estatístico responde: "pi é a proporção da circunferência do círculo com o seu diâmetro, tal qual vimos na escola", então o colega retruca: "Bem, agora você está indo muito longe com sua piada... certamente a população não tem nada a ver com a circunferência do círculo."

essa foi a primeira vez que o ser humano viu um por do sol no solo de outro
planeta - Foto tirada pela sonda Spirit.

Essa estória é realmente interessante, pois de fato estamos usando pi, um número que nasceu do estudo de formas geométricas, para descrever crescimentos populacionais, que aparentemente nada tem a ver com isso. Da mesma forma acontece na ciência de base, todo conhecimento transcende as necessidades de seus estudos e se aplicam, mais cedo ou mais tarde, nas mais diversas áreas. Há 120 anos começavam a se desenvolver a relatividade e a mecânica quântica e, muito provavelmente, seu estudo parecia inútil para diversas pessoas da época, já que muitos acreditavam que esses dois ramos eram apenas dois detalhes a serem consertados na física (supostamente) quase completa da época. Hoje existem aplicações de ambas (em conjunto ou separadas) nas mais diversas áreas da física, da química e da tecnologia, desde a fabricação de computadores, lentes, telefones, diagnósticos médicos, até em outros segmentos de pesquisas como a cosmologia, astrofísica, etc.

Podemos ainda extrapolar essa estória e compará-la com pesquisas como a Curiosity que estuda a possível existência de vida em Marte. A importância de se encontrar vida fora da Terra, a meu ver, se assemelha bastante a tirar a Terra como centro do universo, pois irá tirar desse planeta a visão privilegiada de ser o único com vida. Mas muito além disso, também abre inúmeras possibilidades de se compreender como a vida funciona e se desenvolve em diversas situações, o que pode nos ajudar a entender como a vida se formou aqui. Entender como o clima e a geologia de Marte funcionam também pode revelar coisas surpreendentes sobre o funcionamento e o futuro da Terra. Podemos ver Marte e outros planetas como grande laboratórios a serem explorados, assim como estrelas distantes, buracos negros, quasares e toda a grande quantidade de corpos que temos espaço sideral a fora.

A ciência que aparentemente se aplica:

Dos temas citados acima, talvez o mais fácil de se ver a aplicabilidade seja a quântica, embora todos os nossos conhecimentos possam atuar direta ou indiretamente na produção de tecnologia. Há 100 anos a teoria da relatividade era um conceito novo, aparentemente sem aplicação imediata, mas hoje a usamos em diversos aparelhos, sendo o mais comum o GPS, por exemplo. Os estudos da relatividade e da mecânica quântica nos possibilitaram entender, produzir e aplicar vários fenômenos relacionados a física de partículas e a matéria condensada, tais quais se fazem extremamente presentes hoje em diversos setores da tecnologia, incluindo a medicina.

Imagem de um tumor realizada com um PETscan,
tecnologia que foi possível graças a estudos com antimatéria
Quando um novo conhecimento é obtido na ciência de base é quase impossível prever suas aplicabilidades futuras, como foi quando Dirac previu a existência de antipartículas. Na época você certamente poderia taxar essa pesquisa de inútil, mas hoje uma pessoa com câncer pode ser diagnosticada precocemente por causa de ferramentas de diagnostico como o PETscan que usam antimatéria. Mas não para por aí, o próprio Dirac só conseguiu fazer essa previsão após unir com sucesso a mecânica quântica e a relatividade restrita, tal fato foi considerado um dos feitos mais importantes do século passado... e não teve aplicação imediata.

O mesmo pode acontecer com pesquisas como ondas gravitacionais e o bóson de Higgs, sabemos se elas tem aplicação no momento? Não, não sabemos, mas não podemos prever se no futuro haverão aplicações grandiosas para elas. Porém de imediato elas são de extrema importância para a física, a primeira é uma enorme constatação de uma previsão feita pela Relatividade Geral que abre uma enorme janela para o desenvolvimento de uma nova técnica de medição baseada em ondas gravitacionais, o irá ajudar muito nossa astronomia, astrofísica e cosmologia, já a segunda é a confirmação de que uma teoria que já usamos há quase 60 anos está realmente correta. Elas são, portanto, em primeira mão o atestado que mostra que estamos acertando em nossas previsões acerca do universo no qual vivemos.

Por sua vez, pesquisas e experimentos como a sonda Curiosity e o LHC, desenvolvem uma série de novas tecnologias para que possam ser realizados. Viagens espaciais tripuladas e sondas por exemplo, criam e implementam tecnologias que são usadas em televisores, câmeras fotográficas, roupas, calçados, aparelhos ortodônticos e vários outros. Da mesma forma, pesquisas para a construção de grandes aceleradores geram uma enorme quantidade de novas tecnologias, como a web, que foi desenvolvida pelo Cern.

Essa foto foi a primeira imagem de uma banda postada, pelo próprio CERN,
no modelo de internet que usamos hoje, a WEB. Les Horribles Cernettes
é um grupo musical de paródias formado por funcionárias do CERN.

A ciência aplicada e a ciência base são como duas pernas, se uma delas não funciona direto nós não progredimos direito. Progressos teóricos sempre revelam progressos de aplicação que por sua vez geram mais progressos teóricos, de tal forma que não podemos pensar na ciência moderna sem uma dessas partes. É um erro crasso tentar atribuir mais valor a uma ciência do que a outra, pois elas se completam de modo a formar nosso conhecimento científico atual.

A tecnologia é fruto da aliança entre ciência e técnica, a qual produziu a razão instrumental, como no dizer da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. Esta aliança proporcionou o agir-racional-com-respeito-a-fins, conforme assinala Habermas, a serviço do poder político e econômico da sociedade baseada no modo de produção capitalista (séc. XVIII) que tem como mola propulsora o lucro, advindo da produção e da expropriação da natureza. Então se antes a razão tinha caráter contemplativo, com o advento da modernidade, ela passou a ser instrumental. É nesse contexto que deve ser pensada a tecnologia moderna; ela não pode ser analisada fora do modo de produção[...] (MIRANDA, 2002).

Acredito que, de alguma forma essas linhas acima possam contribuir não para a aceitação, mas sim para a vontade de se debater sobre o assunto. Até a próxima.


----

1 – Ciência de Base/Pura/Fundamental é aquela que tem por pretensão o estudo das propriedades fundamentais da natureza sem visar diretamente uma aplicação.



2 – Essa conotação “ciência que aparentemente não se aplica” é uma divisão arbitrária minha, ela não existe de fato.

{ 13 comentários ... Abandone toda a esperança aquele que aqui entrar }

  1. Que texto leve, sincero e completo.

    Seria interessante mostrá-lo ao meu professor de geografia atual na chance de que ele entendesse "pq eu gosto de Marte, mas não cuido da Terra." É incrível como a maioria das pessoas não entende o desenvolvimento subsequente que uma pesquisa pode trazer.

    Outro ponto legal para se pensar, sem relacionar tecnologia e afins, é o quanto o pensamento social muda por conta de uma teoria renomada. Estava discutindo isso hoje com um futuro sociólogo e sem dúvidas, é um fenômeno lindo.

    Anyway, preciso comentar: tem uns errinhos bobos no início do texto. Eu sou chata, reparei e até os listaria aqui, mas como não sou nenhuma professora de português, vou ficar quieta haha.

    Bom, adorei.

    Obs.: ignore o nome da conta. Caso já responder, pode chamar de Juliana mesmo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá Juliana, obrigado pelo comentário. Esse assunto é bem amplo, dá para abordá-lo de várias formas, mas minha competência no assunto não me permite ir muito além disso. Sobre os errinhos de português, sempre que eu posto um texto, dou um tempo antes de divulgá-lo, esse tempo é justamente para eu mandar para meus amigos e colegas fazerem correções. Mas valeu, vou dar um lida no começo novamente.

      Excluir
    2. Levando em consideração o conteúdo e a importância do texto, errinhos de português perdem total e completamente o valor.

      Excluir
  2. Parabéns, Thiago, mais um texto para se tirar o chapéu. Acompanho o blog há tempos, mas nunca comento nada, mas dessa vez acho que mereceu o elogio.

    Sou aluno de graduação em Engenharia Física, então, tudo que você disse faz parte do meu cotidiano. Sei muito bem como são o quanto desanima ouvir as pessoas falarem: "isso não presta pra nada, é um desperdício de dinheiro e tempo". Gostaria demais que elas entendessem que todas as mordomias que temos hoje em dia e que não largamos por nada veio da simples curiosidade e investigação da natureza. Trabalho montando seminários para os alunos do meu curso, e é impressionante como até as pessoas que estão nesse ambiente conseguem falar: "Não gosto disso, é muita teoria. Quero aprender o que vou usar um dia".

    Mas, como falam por aí: a vida tem dessas coisas. Enquanto isso nós continuamos a fazer a nossa parte.

    Mais uma vez, meus parabéns pelo texto!

    ResponderExcluir
  3. Thiago, meus parabéns, ótimo artigo.

    Só tenho uma ressalva. O texto ficou muito focado em explicar como o conhecimento pode ser aplicado. Eu acredito que a pesquisa científica possa ter seu valor atribuído exclusivamente ao conhecimento que ela cria. A tecnologia que se desenvolva posteriormente é só uma consequência do conhecimento adquirido. O conhecimento é independente, ele não é importante pelo que ele cria, e sim pelo o que ele é.

    Imagino que tenha feito o artigo para conscientizar sobre os benefícios da pesquisa científica, mas também espero que as pessoas comecem a entender que a ciência não se faz em prol da tecnologia e sim do conhecimento, e também que comecem a valorizar o conhecimento pelo o que ele é e não pelo que ele pode criar.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Janil, concordo com você e inclusive essa critica eu recebi da minha noiva (que também posta nesse blog). Confesso que a princípio meu propósito era justamente falar da importância da ciência de base sem tocar na aplicação. Mas me deparei com dois problemas:

      1 - Minha competência em escrever sobre o assunto de forma sucinta e clara me impediu.

      2 - O texto estava ficando confuso e nada direto, um leigo acharia um saco.

      Aí por causa disso, eu resolvi intercalar o assunto com a aplicação dele, pois ao menos daria uma certa base para o leitor pesquisar depois.

      Excluir
    2. A necessidade de adquirir conhecimento acarreta na superação de desafios tecnológicos.. é o que eu acho e o que eu vi até agora. :)

      Excluir
  4. Quando a eletricidade era usada para fazer mágicas quem poderia imaginar que hoje ela sustentaria nossa vida moderna? Absolutamente ninguém. Se não fosse dedicado tempo ao desconhecido ainda hoje viveríamos a luz de velas. Ótimo texto.

    ResponderExcluir
  5. Excelente! Encontrei um Blog de confiança sobre o assunto! Muito bom mesmo, parabéns! rs

    ResponderExcluir
  6. Poderia dizer qual musica do Black Sabbath voce havia postado? O link foi removido : )

    ResponderExcluir
  7. Muito bom, mas cansativo, da proxima vez de poucas sitaçoes e va direto ao ponto!

    ResponderExcluir

Seguidores

Posts populares

Labels

- Copyright © Simetria de Gauge - Powered by Buc! - His name is Robert Paulson - Use $\LaTeX$