Archive for março 2014

Inflação Cósmica, Big Bang e dados do BICEP2 - Uma base para você tentar entender

Recentemente tivemos um grande evento na ciência, vários blogs que eu gosto bastante fizeram ótimos textos e comentários sobre o assunto. Como essa semana foi mais tranquila para mim, resolvi escrever um texto para servir de background para te ajudar a entender um pouco do assunto.

Esse texto é uma visão bem superficial de vários assuntos, a intenção é apenas te dar uma base e te nortear para entender um pouco mais, logo, é essencial que você leia os textos linkados, bem como as fontes.

Carl Sagan disse que para se fazer uma torta de maçã do zero, primeiro era preciso criar o universo. Para entendermos bem tudo que aconteceu também precisamos criar o universo, pois as novas descobertas remetem a dados de acontecimentos muito próximos do Big Bang.

Sem dúvida você já deve ter lido bastante aquela coisa de que o universo era um ponto muito denso, chamado de ovo cósmico que explodiu e deu origem ao universo. E isso é uma pena, pois essa "explicação" é uma caricatura de péssimo gosto sobre o que de fato pensamos e sabemos sobre o Big Bang.


Quando eu me refiro a universo, quero dizer universo observável.
Quando eu digo Big Bang, me refiro ao Big Bang Quente.


Geralmente, a abordagem didática desse assunto tende a puxar para o lado do poético, do maravilhoso e se esquece da ciência por trás da coisas. Para que possamos entender alguns pontos importantes sobre o inicio do universo é preciso conhecer bem a mecânica quântica e a relatividade geral em âmbito acadêmico, no mais, o que podemos fazer aqui é apenas dar uma tratamento bem superficial do que realmente essas teorias dizem.

Imagine que você chegue agora na sua casa e se depare com a cena estranha de sua mãe enchendo uma bexiga (balão de festa). Assim que você entra na sala ela está lá assoprando aquela coisa, e a bexiga está enchendo. O que você pensaria? Que sua mãe achou uma bexiga parcialmente cheia por aí e começou a encher, ou que ela começou a assoprar desde que a bexiga estava totalmente vazia? Obviamente que você escolheria a segunda opção. Com isso, é fácil pensar que se você chegasse um pouco antes, a bexiga estaria menos cheia, ou mesmo vazia.

Podemos extrapolar esse exemplo para o nosso universo observável. Quando olhamos e estudamos o movimento das galáxias e de outros corpos, vemos um universo que está se expandindo com determinada velocidade, então podemos retroceder essa expansão e pensar que o universo era no passado excepcionalmente pequeno, infinitamente quente e denso, nesse estágio do universo as nossas leis da física como conhecemos hoje parecem não ser válidas, podemos chamar esse microuniverso de "singularidade". Nós ainda não fazemos ideia de como essa "singularidade" surgiu ou mesmo começou a se expandir para formar o universo que temos hoje. Porém as equações que usamos para descrever a dinâmica do universo junto com nossas observações nos permitem levantar hipóteses sobre como o universo se desenvolveu em seus instante iniciais. Ou seja, não temos ainda uma física para o momento inicial, mas temos física para os bilionésimos de segundo que procederam esse instante.

Colocando isso em nomes e teorias, temos os estudos de Friedmann a partir das equações de campo da reatividade geral, que obtiveram soluções que mostravam um universo expansivo e colapsante. Poucos anos depois, Hubble conseguiu mostrar, a partir da observação do afastamento de galáxias distantes, que de fato o universo se expandia, como previsto teoricamente. Décadas mais tarde temos os trabalhos de Gamow que tratavam da formação de núcleos atômicos no inicio do universo, tendo como predição a existência de uma radiação térmica que permeia todo o espaço, chamada de radiação cósmica de fundo em micro-ondas. Dezenove anos depois dois engenheiros físicos dos laboratórios Bell, nos EUA, tropeçaram na radiação cósmica de fundo e ganharam um Nobel por conta disso.


Temos então, duas evidências bem fortes de que o Big Bang pode ter realmente acontecido. Mas, nem tudo são maravilhas, da mesma forma que a teoria parecia solucionar alguns problemas, ela parecia não explicar outras coisas, como o "problema do horizonte e da planaridade" do universo, além de um problema que é chamado de "a origem da estrutura de larga escala". Para piorar um pouco as coisas, teorias mais modernas da física de partículas que tentam unificar as forças fundamentais do universo, se depararam com a predição de monopolos magnéticos massivos e estáveis, além de outros problemas de origem topológica que não cabem nesse texto.

Tá, mas o que esses problemas significam?

O primeiro problema, o do horizonte, é que radiação cósmica de fundo parece ser exatamente a mesma para dois pontos distantes do universo que nunca tiveram contato. Ou seja, como dois lugares diferentes, com uma distância enorme entre um e outro (maior até do que luz poderia ter percorrido) podem ter trocado calor e entrado em equilíbrio térmico?

O segundo problema é o da planaridade, ou seja, quando medimos a densidade de energia do universo ela mostra um universo aparentemente plano. Se essa densidade fosse um pouco maior, nosso universo já teria colapsado, se fosse pouco menor o universo teria se expandido de forma a não permitir a formação de estrelas, galáxias e etc. Assim, a densidade logo após o Big Bang teria que ser basicamente a mesma que temos hoje... uma baita coincidência, não acha?

O Terceiro problema, é chamado de "A origem da estrutura de larga escala", que é o fato de quando olhamos nos confins do universo, a matéria parece se apresentar em grandes grupos específicos, o que é estranho, pois se o universo é homogêneo e isotrópico, essas estruturas deveriam aparecer de forma mais homogênea. Assim uma expansão comum do universo não deveria formar esse padrão de distribuição de matéria que somos capazes de ver.

nessa imagem vemos um "mapa" de galáxias e como elas estão
dispostas de forma não uniforme.
Por último, temos o problema com os monopolos magnéticos massivos, que surgem quando tentamos fazer uma teoria de grande unificação das forças fundamentais, conhecidas como GUT, uma vez que se acredita que as forças do universo estavam todas unificadas em seu principio, e à medida que o universo foi se expandindo e esfriando, essas forças foram se separando. O ponto problemático é que esses monopolos nunca foram encontrados na natureza, e a teoria padrão do Big Bang não diz se eles foram ou não produzidos. Além disso, a teoria também prevê problemas topológicos para o universo que são muito semelhantes àqueles que encontramos em cristais líquidos.

Esses problemas levantados, podem ser solucionados por uma hipótese bem interessante, que chamamos de inflação cósmica. Para tentar entendê-la, voltemos ao início do texto quando eu disse que o nosso universo era muito pequeno e infinitamente denso e quente. Ignorando o que quer que tenha feito o universo se expandir, acreditamos que logo após o Big Bang o universo tenha passado por uma transição de fase.... sim, semelhante aquela que você viu no Ensino Médio, lembra? Lá nas aulas, nós aprendíamos que quando a água virava gelo, havia liberação de energia, conhecida como calor latente. De forma semelhante o universo pode ter passado por uma transição de fase, à qual liberou grande quantidade de "energia latente" e causou uma expansão incrivelmente rápida. É possível ainda uma visão do ponto de vista das GUT's (forças unificadas), mas para isso precisaríamos falar sobre campos de Higgs e outras minuciosidades que deixariam esse texto enorme, então deixo isso para outra hora.

Provavelmente o que pode ter desengatilhado essa transição de fase que deu origem a inflação, é um campo escalar chamado de inflaton, que ainda não conhecemos direito. Por sua vez, perturbações nesse campo que foram amplificadas pela inflação poderiam ser medidas indiretamente a partir de variações na temperatura da radiação cósmica de fundo. E adivinhe!! Em 1992 a sonda COBE conseguiu encontrar e medir essa variação de temperatura, que batia com uma precisão muito boa com o valor teórico esperado.
esse é uma mapa da radiação cósmica de fundo feito pelo pela WMAP, que foi sucessora da COBE, aqui é possível as flutuações de temperatura em cores mais quentes.

Após essa insana expansão, as forças se desunificam, a inflação pára e começa uma evolução aparentemente acelerada, mas sem grande espanto.

Basicamente para explicar como os problemas que a Teoria do Big Bang deixa de fora foram resolvidos pela hipótese da inflação, nós iríamos precisar de matemática, porém isso é inviável aqui, então irei me ater apenas de forma superficial a isso.
Ilustração da história do universo, veja que logo depois do Big Bang há uma rápida inflação
O problema do horizonte é resolvido de forma aparentemente simples. Pois devido a inflação, pontos que hoje estão muito distantes estavam muito próximos no passado, então eles puderam trocar informação.

O problema da planaridade pode ser pensado assim; o universo se expandiu tão rapidamente que qualquer curvatura que ele possa ter possuído no passado, foi totalmente perdida, dando lugar a um universo plano.

O problema com os monopolos magnéticos e a sua solução são bem interessantes e podem ser lidos na integra no livro Inflationary Universe, do Allan Guth. O ponto central dessa história é que no estudo feito por Preskill e em paralelo por Guth e Tye, foi possível mostrar que o número correto de monopolos magnético, bem como seu confinamento (semelhante ao de quarks para formar prótons e nêutrons) só poderiam acontecer em um universo muito quente e denso, além disso os monopolos apresentavam uma massa 10¹⁶ vezes maior que a do próton, portanto se o universo não tivesse se expandido muito rapidamente, ele teria colapsado devido a enorme massa dos monopolos somada as das outras partículas.

Já no caso da distribuição irregular de matéria que vemos no universo distante, a origem da estrutura de larga escala, obtém sua solução nas flutuações do inflaton que podem ser vistas como pequenas diferenças na densidade de matéria do universo. Dessa forma a expansão atuou como um amplificador dessas flutuações e espalhou-as pelo universo, assim, devido aos pontos de maior densidade, as galáxias puderam ser formadas de maneira irregular.  

Agora vamos falar (finalmente!!!) sobre o que houve essa semana.

Acredito que se você veio até esse texto, deve ter se deparado com a notícia sobre dados do BICEP2 que corroboravam para inflação cósmica, então acho que vale começarmos por algumas dúvidas básicas:

" O que é o BICEP2?"

É um experimento bem legal feito no Polo Sul, que visa medir e estudar a polarização da radiação cósmica de fundo.

"Tá, mas o que é a polarização da radiação cósmica de fundo?"

A radiação cósmica de fundo é uma onda eletromagnética que tem sua origem no Big Bang e permeia todo o universo. Do que aprendemos na escola sabemos que ondas eletromagnéticas são formadas por um campo elétrico, um campo magnético perpendiculares entre si e também perpendicular a sua propagação. O que chamamos de polarização é a direção na qual o campo elétrico aponta.  

onda eletromagnética; em vermelho (eixo y) temos o campo elétrico, em azul (eixo z) temos o campo magnético, e a propagação da onda se dá no eixo x.

Então, o que estamos tentando medir é a direção que o campo elétrico da radiação cósmica de fundo aponta. Sendo a radiação cósmica de fundo o eco do Big Bang, ou se preferir, "a assinatura eletromagnética" dele.

O que o BICEP2 mede, é nada mais do que os fótons provenientes dessa radiação cósmica de fundo em todas as direções do espaço. Assim, se os fótons de uma região tem polarização aleatória, então a polarização daquela região é inexistente, ou muito pequena. Por sua vez, se os fótons de uma determinada região tem suas polarizações apontando em uma direção específica, dizemos que a radiação cósmica de fundo é polarizada naquela região. O que eu estou dizendo é o seguinte, se olhamos em uma região do espaço e vemos que os fótons daquela região tem polarização para direções bem diferentes, essa região é não polarizada, se os fótons dessa região tem polarizações para (mais ou menos) a mesma direção, dizemos que a região é polarizada, e é isso que o BICEP2 está medindo.

Com essas medidas nós podemos recolher informações de quando o universo tinha apenas 380 mil anos, que é quando ele se torna "transparente a radiação". Portanto nós podemos entender mais sobre o Big Bang e a Inflação cósmica.

"Mas como podemos entender mais sobre o Big Bang?"

É simples, se nós conseguimos prever e medir a existência de não-uniformidades na radiação 380 mil anos após o Big Bang, nós podemos retroceder no tempo e entender como essas uniformidades estavam no inicio do Big Bang.  E antes que te surjam dúvidas, essas não-uniformidades tem origem devido Inflação que  é causada pela presença de uma quantidade substancial de energia escura, que por sua vez está associada ao campo do inflaton. Mas sabemos que na mecânica quântica, nenhum campo ou objeto é sempre verdadeiramente constante ou estacionário, há sempre uma espécie de "oscilação" quântica que faz com que essas grandezas sejam um pouco incertas. O valor do campo inflaton sofre essa "oscilação" quântica. Como consequência, a energia escura que está presente durante a inflação não é exatamente constante em todo o espaço, o que significa que há pequenas não-uniformidades na expansão do espaço, o que por sua vez levam a pequenas não-uniformidades no Big Bang, que eventualmente, tornar-se visível como não-uniformidades na temperatura dos fótons na radiação cósmica de fundo.

As polarizações medidas no BICEP2 são chamadas de B-mode. De uma forma geral as polarizações podem ser grosseiramente entendidas em duas categorias, a primeira categoria são as polarizações que quando vistas a partir de um espelho, elas aparecem perfeitamente iguais, essas polarizações recebem o nome de E-mode, por sua vez, se olhar essa polarização por um espelho e ela parecer ao contrário, damos o nome de B-mode. (para saber mais veja aqui)

"Porque os B-mode e não os E-mode?"

Não-uniformidades nas energias dos fótons, quando o universo foi se tornando transparente, também estão relacionados a presença de ondas gravitacionais. Ondas gravitacionais podem dar origem tanto às polarizações E-mode quanto B-mode. Assim, as B-mode em grandes escalas nos dizem sobre a não-uniformidade devido às ondas gravitacionais que possam ter existido em 380 mil anos após o Big Bang e uma descoberta de B-mode em grandes escalas seria uma medida poderosas (não definitiva) de ondas gravitacionais presentes no início do universo.

Agora vamos aos dados do BICEP2.



No gráfico acima o que nos interessa são o pontos pretos, que representam os B-modes. Segundo divulgado pelos pesquisadores do experimento BICEP2, eles obtiveram uma significância estatística de 3 sigmas na detecção de B-modes, que ainda não é suficiente para dizermos que se descobriu algo. Porém é importante saber que, se algo a vir a ser descoberto, NÃO é uma prova definitiva do Big Bang, NÃO é uma prova direta de ondas gravitacionais. Ainda, é necessário esperar obter mais dados e fazer estudos mais detalhados para se saber se essas polarizações B-modes são de fato o que esperamos ser, se elas possuem os comportamentos e propriedades previsto teoricamente, para que possam ser consideradas evidências consistentes.

Apesar de todo o estardalhaço da imprensa, ainda resta muita coisa a ser vista no âmbito científico, como o tamanho dessa polarização encontrada, que parece ser maior do que deveria, desfavorecendo as ondas gravitacionais e poderia indicar que algum aspecto importante está sendo deixado de fora de nossas teorias.

O que podemos fazer agora é esperar. Se os dados estiverem corretos, eles serão uma evidência indireta das ondas gravitacionais provindas da inflação, mas não será de forma alguma a primeira evidência - A primeira evidência foi obtida em 1993 (Leia aqui). Além disso, esses dados podem ser poderosas evidências da inflação cósmica e também um bom indicador de que nossas forças estavam unificadas no passado. Porém é importante lembrar que essa é uma primeira medição de um experimento, é possível que seja um problema com o experimento ou um erro de medição ainda, da mesma forma que ocorreu com o OPERA e seus neutrinos mais rápidos que a luz. Então sejam prudentes!

"Tá, resume então..."

De forma bem simplificada o que detectamos foram sinais da inflação cósmica que estão presentes ainda na radiação cósmica de fundo. A partir desses sinais é possível também obter evidências indiretas de ondas gravitacionais e conhecermos melhor alguns aspectos dos momentos logo após o Big Bang.

Alguns erros que foram cometidos na divulgação e na recepção desse assunto que gostaria de comentar:

1 - Prova de ondas gravitacionais

NÃO! de forma alguma, se os dados baterem exatamente com o esperado pela teoria teremos mais uma evidência indireta (porém forte) de ondas gravitacionais. Embora os primeiros dados divulgados mostrem problemas justamente nesse ponto... mas vamos esperar.

2 - Prova definitiva do Big Bang

Nem ferrando! É ainda mais absurdo que dizer que é prova de ondas gravitacionais. O que podemos afirmar é que seria uma forte evidência da inflação e com isso nossas teorias para estudar os momentos iniciais do universo podem estar dando resultados corretos, mas nada além disso!

3 - Einstein se dá bem novamente

Não necessariamente, apesar de ondas gravitacionais estarem diretamente ligadas a relatividade geral, essas medições seriam um triunfo para os teóricos da inflação, como o Já citado Guth, Preskill, Starobinsky, Linde, entre outros.

4 - É a primeira detecção de ondas gravitacionais.

Não, não é! Se caso vier a se confirmar que as polarizações B-mode são exatamente a que esperávamos, elas seriam a segunda evidência indireta de ondas gravitacionais, a primeira evidência veio na década de 90 a partir de estudos com pulsares binários.

5 - Como vocês acham uma coisa dessas e não acham um avião?

Sim, eu li essa pérola em vários lugares... Nós usamos um detector de polarização de radiação eletromagnética ultrassensível para realizar esse estudo, como diabos seria possível encontrar um avião com isso?

6 - É um estudo inútil!

Ahh, a mente descontinua e imediatista... se você pensa assim, talvez fosse legal dar uma lida nesse meu texto aqui.

7 - Expansão e inflação é a mesma coisa?

Não. Expansão do universo acontece hoje em dia de forma acelerada, porém nada tão surpreende. Já a inflação ocorreu em um intervalo de tempo extremamente pequeno (10⁻³² segundos) e o universo se expandiu a cerca 10⁵⁰ vezes. Muito provavelmente a origem da expansão atual tenha relação com a inflação, uma vez que a energia escura atua como pressão negativa fazendo o universo acelerar, porém na inflação houveram outros agentes que hoje não existem mais.

Como esse texto ficou monstruosamente grande e acredito que eu tenha conseguido dar um background para que você possa entender as notícias, caso queira ler mais sobre o assunto veja esses textos abaixo:

Fontes:

1 - Baumann. D - Lectures on Inflation
3 - Guth. A - Inflationary Universe
4 - K. Sato, Mon. Not. R. Astron. Soc. 195, 467 (1981); Phys. Lett. 99B, 66 (1981).
5 - A. H. Guth, Phys. Rev. D 23, 347 (1981)
6 - UFRGS - Inflação Cósmica 
8 - Resonaances
9 - Série sobre Inflação - True Singularity (VEJA!)
domingo, 23 de março de 2014
Posted by Thiago V. M. Guimarães

Mecânica Quântica - uma breve introdução

Finalmente comecei a cumprir a promessa e esse é nosso primeiro texto da série a respeito de mecânica quântica (MQ). Minha intenção aqui será unicamente dar uma visão desmistificada do que é a mecânica quântica no seu panorama geral, então nesse texto e nos textos seguintes espero abordar:

1 – Introdução (não histórica)

2 – Dualidade Onda-Partícula e Função de Onda.
3 – O caráter probabilístico da MQ e alguns formalismos
4 – Spin
5 – Curiosidades, paradoxos e outros

Nesses textos não pretendo fugir muito da matemática, ou seja, eu vou tentar ensinar vocês a como ler as equações e não a trabalhar com elas, pois existem muitos e muitos textos bons por aí que podem dar uma visão bem didática do assunto, mas nenhum dos que achei parece se preocupar em mostrar qual a matemática usada e como ela usada, ainda que seja uma das peças fundamentais da mecânica quântica. 

1 – Introdução

Como tenho muito a escrever, vou deixar de lado aqui uma introdução histórica sobre a MQ, porém você poderá ler sobre ela (faça isso!) no links abaixo:

- O Surgimento da Física Quântica (Unicamp)
- A História da Teoria Quântica (USP)
- Uma Breve História da Mecânica Quântica


Na escala de tamanho do nosso dia-a-dia, a natureza parece prosseguir sem muitos mistérios. Com a mecânica de Newton conseguimos descrever muito bem o deslocamento de carros, a queda de pessoas, os socos e chutes em uma luta de MMA. Também conseguimos descrever fenômenos eletromagnéticos a partir do eletromagnetismo consagrado por Mawxell.

Porém nossa física clássica falha quando tentamos utilizá-la para descrever fenômenos que ocorrem distantes dos nossos olhos, na escala atômica e subatômica. Por exemplo, a existência e as propriedades dos átomos, ligações químicas e propagação de um elétron em um cristal só podem ser explicadas de forma correta no âmbito da mecânica quântica. Podemos estender nosso aprendizado da mesma para explicar também os corpos macroscópicos, uma vez que o comportamento de seus íons, átomos, elétrons, são regidos por leis da MQ.

De um ponto de vista histórico, no final do século XIX, as pessoas distinguiam entre duas entidades em fenômenos físicos: matéria e radiação. Leis completamente diferentes foram utilizadas para cada uma delas.  Por sua vez, a mecânica quântica veio contribuir para uma unificação notável dos conceitos fundamentais da física, tratando partículas de matéria e radiação em pé de igualdade.

Para prever o movimento de partículas de matéria, as leis da mecânica newtoniana eram utilizadas e seu sucesso foi muito impressionante. No que diz respeito à radiação, a teoria do eletromagnetismo, graças à introdução das equações de Maxwell, tinha produzido uma interpretação unificada de um conjunto de fenômenos que eram considerados como pertencentes a diferentes domínios: eletricidade, magnetismo e óptica. Em particular, a teoria eletromagnética da radiação havia sido espetacularmente confirmada experimentalmente pela descoberta das ondas hertzianas. Porém, algumas inconsistências surgiram. Havia dificuldades para interpretar o comportamento dos elétrons ao redor do núcleo, considerando que ambas as teorias (mecânica e eletromagnética) estavam corretas.

Em linhas gerais, segundo a teoria eletromagnética de Maxwell, uma partícula carregada, quando em movimento acelerado deve irradiar e perder energia. Assim, se os elétrons girassem ao redor do núcleo, estariam sujeitos a uma aceleração centrípeta, de forma que perderiam energia e cairiam em direção ao núcleo com um movimento espiral, emitindo radiação eletromagnética. Entretanto, um átomo com os elétrons parados ao redor do núcleo também não apresenta estabilidade, pois a força de atração entre o núcleo e os elétrons faria com que estes caíssem em direção ao núcleo, também emitindo radiação. Desta forma, era necessário um modelo que explicasse como os elétrons permaneciam em orbitais estáveis, sem que o átomo se “autodestruísse” com o tempo. Além disso a teoria clássica ainda apresentava alguns problemas em relação a absorção e emissão de radiação.

Na segunda década do século XX, já havia importantes resultados dos estudos da interação da radiação com a matéria, bem explicados pela força de Lorentz. Este conjunto de leis tinha trazido a física a um ponto que pode ser considerado satisfatório, tendo em vista os dados experimentais dessa época. Porém, a visão determinista clássica dominava o pensamento científico, sendo que a matéria era descrita em termos de partículas e átomos, enquanto a radiação era vista como uma onda. GRIBBIN descreve bem a situação quando afirma que:
“nessa época o melhor caminho para unificar a física parecia ser o estudo da interação entre a radiação e a matéria. Mas foi precisamente aí que a física clássica, até então sempre vitoriosa, falhou”.

Segundo uma lenda da física, no início do mesmo século, Lorde Kelvin disse que, no panorama da física, o céu estava obscurecido por duas nuvens negras. A primeira nuvem de Kelvin era o movimento da Terra ao longo do Éter, e a segunda nuvem se referia a necessidade da equipartição da energia para se corrigir discrepâncias entre previsões teóricas e dados experimentais na radiação térmica (nos focaremos nisso mais abaixo).

Essas nuvens anunciaram uma tempestade, a primeira deu origem a Teoria da Relatividade e a segunda a Mecânica Quântica.

A "revolução" quântica e a "revolução" relativística eram, em grande medida, independentes, uma vez que desafiaram a física clássica¹ em diferentes pontos. A teoria da relatividade (restrita) veio para explicar fenômenos que ocorriam a velocidades próximas a da luz, enquanto que a teoria quântica tentava explicar fenômenos que ocorriam em dimensões próximas ou inferiores a do átomo, que eram pontos distintos em que a teoria clássica falhava.

No entanto, é importante notar que a física clássica não morreu após a construção dessas duas novas mecânicas, pois em ambos os casos, ela pode ser vista como uma aproximação das novas teorias. Ou seja, para baixas velocidades, as equações que descrevem a relatividade nos dão as equações que usávamos na mecânica clássica, e basicamente o mesmo acontece com a mecânica quântica para casos macroscópicos específicos. Logo essa aproximação é válida para a maioria dos fenômenos que ocorrem na escala do nosso dia a dia, nos permitindo usar a mecânica newtoniana para prever corretamente o movimento de um corpo sólido, desde que seja não-relativístico (velocidades muito menores que a da luz) e seja macroscópico (dimensão muito maior do que as atômicas).

Ainda sim, a partir de um ponto de vista fundamental, a teoria quântica permanece indispensável. É a única teoria que nos permite compreender a própria existência de um corpo sólido e os valores dos parâmetros macroscópicos -como a densidade, calor específico e elasticidade, etc- associada a ele.

Nosso ponto de partida é entendermos o que começou dando errado na teoria clássica e o que foi necessário fazer para corrigir esse erro, ou seja, entendermos uma das duas nuvens negras de Kelvin.

Todos nós aprendemos nas incríveis e animadas aulas de termodinâmica do ensino médio, que corpos aquecidos emitem radiação térmica² em um espectro contínuo, ou seja, emitem luz que está quase totalmente na frequência do infravermelho. Por esse motivo só podemos vê-la com aparelhos especiais chamados de espectrômetros, sendo possível então determinar a temperatura de um corpo a partir da radiação térmica que ele emite.

De forma bem geral, o espectro de radiação térmica emitida por um corpo aquecido depende da composição dele, ou seja, um carvão incandescente emite um espectro de radiação térmica diferente de ferro fundido, logo para um estudo mais simplificado e eficiente, seria uma boa ideia idealizar um objeto que eliminasse problemas desnecessários.

Como você deve estar cansado de saber, físicos gostam de coisas ideais, como vaca esférica num pasto plano sem atrito e no vácuo, então give me some more; Para o estudo de radiações idealizamos um tipo de corpo (chamado de corpo negro) que absorve toda radiação térmica que incide nele e emite radiação em todo espectro. Dois corpos negros a mesma temperatura emitem o mesmo espectro de radiação térmica


É possível pensar em um corpo negro como uma caixa com um orifício, toda a radiação do exterior que entra na caixa dificilmente consegue sair dela e então será absorvida em seu interior. Depois que toda radiação externa é absorvida pelo orifício, ele passa a emitir um espectro de radiação que chamamos de espectro de corpo negro. A energia total irradiada por esse corpo negro é chamada de Radiância e ela depende da temperatura do corpo. Pelos trabalhos de Stefan e Boltzmann, foi possível mostrar que a radiação emitida por um corpo negro é proporcional a temperatura desse corpo na quarta potência, ou seja:

$R_{T} = \sigma T^4$

Essa relação entre radiância e temperatura é conhecida como lei de Stefan-Boltzmann, e $\sigma$ é a constante de Stefan-Bolztamann. Em 1899, a partir de dados experimentais, Lummer e Pringshein, plotaram um gráfico da radiação de corpo negro pela frequência da radiação emitida e obtiveram essas belas curvas:
Os valores 1000/2000/3000... são as temperaturas em Kelvin.
Por esse gráfico vemos que quando a temperatura aumenta a frequência da radiação se desloca linearmente para valores mais altos, a isso chamamos de lei de deslocamento de Wien. Para a finalidade que queremos (uma introdução a MQ), é mais interessante plotar um gráfico da densidade de energia emitida pela frequência. A densidade de energia (que chamaremos de $\rho$) se relaciona com a radiância da seguinte forma: $R_{T}= \frac{c}{4} \rho_{T}$ (c é a velocidade da luz) - ou seja, a Radiância nada mais é do que densidade de energia multiplicada por uma constante. Ainda podemos rearranjar a equação, fazer algumas considerações e substituições e obter a densidade de energia em função a frequência $\nu$, e ela damos o nome de fórmula de Rayleigh-Jeans para a radiação emitida pelo corpo negro:

$\rho(\nu)=\frac{2 \pi \nu^2 kT}{c^3}$

Na fórmula acima, $K$ é a constante de Boltzmann.
Usando essa fórmula para plotar nosso gráfico da densidade de energia pela frequência, obtemos:

Gráfico dos valores esperados teoricamente, apenas a temperatura de 1750 K é utilizada. (obs. ignore o "grau")
Nele podemos ver que para frequências altas a energia tende ao infinito. Porém, ao plotar o gráfico a partir de dados experimentais, obtemos:
Gráfico dos valores esperados experimentalmente, apenas a temperatura de 1750 K é utilizada. (obs. ignore o "grau")
Aqui vemos uma curva bem comportada, que não vai ao infinito para altas frequências, mas sim para zero. Vamos sobrepor o gráfico teórico com o experimental:

Puts, alguma coisa deu muito errada! O teórico diz que a energia tende ao infinito para frequências muito altas, enquanto o experimental mostra uma curva totalmente diferente, em que a energia vai a zero para frequências altas. A esse problema damos o nome de catástrofe do ultravioleta, pois a divergência entre os gráficos acontece na região do espectro ultravioleta, e é aqui que começa nosso primeiro passo em direção a MQ.

Antes que você pense que pode ser algum erro de matemática ou mesmo na forma que foi utilizada a física clássica para descrever esse problema, lembre-se que já repetimos os cálculos e já repensamos a teoria milhares e milhares de vezes.
“Então se não fizeram "cagada" na matemática e nem erraram em considerações na física clássica, onde está o problema?”

O problema era no cerne da teoria clássica, pois considerávamos que a radiação era continuamente emitida e absorvida, até que Planck propôs uma hipótese audaciosa (e desesperada) de considerar a discretização dessa energia, ou seja, a energia seria emitida e absorvida em pequenas quantidades que ele chamou de quanta. Matematicamente falando, ele assumiu que quando a frequência da radiação fosse muito grande (tendesse ao infinito) a energia média da radiação deveria tender a zero. Com essa consideração, Planck conseguiria reescrever a fórmula para densidade de energia de modo que ela se encaixasse nos dados experimentais, contudo a energia não mais assumiria qualquer valor, mas sim valores específicos, por exemplo:

Se na teoria clássica, a energia poderia assumir valores de 1/2,1,3/2,2,3/2,3,... agora com a discretização da energia ela poderia assumir apenas valores específicos inteiros, como 1,2,3,4... e é justamente a isso que damos o nome de quantização. Quantizar algo é fazer ele assumir apenas valores específicos e não mais contínuos.

Depois de várias manipulações matemáticas, tomando como base a discretização da energia, Planck conseguiu obter uma cara nova para fórmula de Rayleigh-Jeans:

$ \rho_{T}( \nu ) = \frac {8 \pi \nu^{2}}{c^{3}} \frac {h \nu}{ e^{ \frac {h \nu}{KT}} - 1} $


lembrando que $\pi = 3,14$. $c$ é a velocidade da luz, $K$ é a constante de Boltzmann novamente, $h$ é a constante de Planck e $e$ é o famoso exponencial, que vale 2,718.

Agora, a nossa teoria passa a descrever com excelente aproximação o que obtemos nos experimentos:


Em um apanhado geral de tudo que falamos aqui, começamos com uma teoria clássica da radiação, que não descrevia de forma satisfatória os dados experimentais relacionados a emissão e absorção de radiação por um corpo negro. Os dados experimentais diziam que para grandes frequência a densidade de energia da radiação tenderia a zero, enquanto a teoria dizia que para essas frequências a energia deveria ir ao infinito. Para que houvesse solução para o problema, Planck considerou a emissão e a absorção de radiação de forma discreta, como se a radiação fosse emitida e absorvida em pequenos pacotes que ele chamou de quanta. Com essa nova visão, Planck foi capaz de modificar a fórmula de Rayleigh-Jeans para que ela descrevesse os dados obtidos no experimento, assim a teoria estava novamente de acordo com o observado na natureza, porém com uma modificação fundamental na forma como enxergávamos o fenômeno. Foi assim que demos os primeiros passos em direção a mecânica quântica. Existe ainda uma forma de mostrarmos o fenômeno de quantização a partir do eletromagnetismo, no estudo de radiações justamente, se eu conseguir pensar em uma forma simples de demonstrar isso eu abordarei no tópico 5.

Para encerrar o nosso primeiro texto vamos nos focar na quantização da energia que citei, mas não expliquei acima. Como eu disse anteriormente, a hipótese de Planck foi audaciosa e desesperada, pois violava o principio de equipartição da energia, que tem origem na distribuição de Boltzmann, na qual a energia média de um sistema térmico pode ser calculada utilizando uma ferramenta matemática chamada Calculo Integral, e então obtemos:

$ E= KT $

Levando isso em consideração Planck tomou, como já era conhecido da teoria clássica, que para frequências muito próximas de zero, a energia tenderia a $KT$. A contribuição verdadeiramente relevante veio da consideração de que a energia média para frequências muito grandes fosse zero, e não $KT$ como o princípio de equipartição dizia. Então Planck precisou modificar a forma com que a energia era calculada para que essa ultima condição fosse satisfeita. Levando em conta sua nova hipótese, Planck considerou que os valores discretos da energia fossem distribuídos uniformemente, ou seja:


$E = 0, \Delta E, 2 \Delta E, 3 \Delta E$
ou ainda :

$E = n \Delta E$

sendo $\Delta E$ um intervalo constante entre dois valores discretos de energia e $n = 0,1,2,3...$. O ponto importante aqui é que para frequências pequenas o $\Delta E$ é pequeno, e para frequências grandes o $\Delta E$ é grande. Com isso podemos relacionar a variação da energia $\Delta E$ com a frequência $\nu$ da radiação da seguinte forma:

$\Delta E = h \nu$

em que $h$ é a constantede Planck e a partir daí podemos considerar a energia como:

$E=nh\nu$

sendo $n=0,1,2,3,4...$ - ou seja, $n$ não é válido para valores não inteiro como 1/2,3/2,4/5,6/5,1/3... logo nossa energia é quantizada e então podemos recalcular a densidade de energia como:

$\rho_{T}( \nu ) = \frac {8 \pi \nu^{2}}{c^{3}} \frac {h \nu}{ e^{ \frac {h \nu}{KT}} - 1}$


Apesar de tudo que vimos até aqui parecer algo incrível, uma grande parcela da comunidade científica não aceitou com grande empolgação a hipótese de Planck (incluindo ele mesmo). Apenas 20 anos mais tarde, trabalhos mais sólidos começaram a surgir e a Mecânica Quântica que temos hoje começou a ganhar forma.
Espero que para vocês tenha ficado claro, qualquer dúvida é só deixar nos comentários. No próximo post irei abordar Dualidade Onda Partícula e Função de Onda.

Bibliografia:

- Cohen-Tannoudji - Quantum mechanics, vol 1. (introdução)
- Toledo Piza - Mecânica quântica. (detalhes adicionais)
- Lima C.R.A - Física Moderna (manuscrito). (corpo do texto)
- Feynman - Lectures on Physics. (mais detalhes adicionais)

1 - A teoria da relatividade, pode ser considerada ainda uma teoria clássica, embora tome o título de moderna por ser contemporânea. Nesse texto e no texto seguinte, a chamaremos de moderna.

2 - Radiação térmica é radiação eletromagnética, até o momento, quem descrevia bem essas radiações era apenas o eletromagnetismo.


domingo, 9 de março de 2014
Posted by Thiago V. M. Guimarães

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